O papel do STJ na segurança jurídica da previdência complementar

A independência patrimonial entre submassas de planos de previdência de entidades fechadas de previdência complementar.

 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) terá, mais uma vez, um trabalho importante pela frente para uniformizar o entendimento sobre um tema que tem gerado uma enxurrada de processos no âmbito do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES): a independência patrimonial entre submassas de planos de previdência complementar de entidades fechadas de previdência complementar.

 

As decisões proferidas pelo TJES têm causado perplexidade, não somente nos profissionais da área jurídica, por se mostrarem dissonantes dos princípios e regras que regem a previdência complementar brasileira, mas também no mercado de previdência complementar (um dos mais importantes para a economia nacional), diante do notório risco sistêmico que tais decisões representam nas esferas jurídica, social e econômica.

 

 Os casos em questão envolvem planos de previdência privada administrados pela Previdência Usiminas, entidade fechada de previdência complementar (EFPC), sem fins lucrativos, que é classificada pela legislação do setor como multipatrocinada e multiplano, porque administra vários planos de benefícios para diversos grupos de participantes e patrocinadores, com total independência patrimonial.

Um dos planos de aposentadoria administrados pela Previdência Usiminas, o PBD, existe desde 1975. Ele fora constituído pela empresa Cosipa para pagamento de benefícios de aposentadoria aos seus funcionários. Cerca de 10 anos depois, em 1985, uma empresa concorrente do setor siderúrgico, a Cofavi, assinou convênio de adesão e tornou-se também patrocinadora deste mesmo plano.

 

Com a adesão da Cofavi, foram criados no Plano PBD dois fundos, ou submassas, devidamente segregados patrimonialmente e não solidários, para receber os aportes financeiros dos trabalhadores das siderúrgicas: o fundo Cosipa (mais antigo, constituído em 1975) e o fundo Cofavi (mais recente, constituído em 1985).

 

Ocorre que a Cofavi faliu na década de 1990 e o fundo dos seus ex-empregados recebeu contribuições somente de janeiro de 1986 até março de 1990 (pouco mais de 4 anos), nada mais tendo sido vertido a esse fundo desde então. Portanto, há 31 anos não são destinados recursos de nenhuma espécie da Cofavi e/ou de seus ex-empregados para o aludido fundo previdenciário administrado pela Previdência Usiminas.

Em virtude desta realidade, o fundo da Cofavi se exauriu não somente por ter sido devolvido o dinheiro arrecadado para a maior parte dos contribuintes, mas também por ter sido consumido pelos pagamentos dos proventos complementares efetivados pela EFPC entre 1985 e 1996, quando houve a suspensão dos pagamentos dos benefícios exatamente em razão da inexistência de recursos para fazer frente a esses pagamentos.

Embora os valores atualmente existentes no Plano PBD sejam oriundos exclusivamente das contribuições da Cosipa e de seus empregados e ex-empregados, 800 trabalhadores da ex-patrocinadora falida, que, como visto, contribuíram por menos de 5 anos para o fundo Cofavi, pleiteiam judicialmente o recebimento de uma aposentadoria vitalícia.

 

Ou seja: os ex-trabalhadores da Cofavi, que contribuíram somente por 50 meses, pleiteiam o mesmo tratamento financeiro dos contribuintes mais antigos da Cosipa, que contribuíram por 550 meses.

 

A Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), que é o órgão federal de fiscalização do setor, já se posicionou sobre o caso, afirmando que o repasse não deve ser feito pela Previdência Usiminas, uma vez que o contrato não prevê solidariedade entre os fundos ou submassas de Cosipa e Cofavi.

 

Em 2015, a 2ª Seção do STJ julgou o recurso especial (REsp) nº. 1.248.975/ES, envolvendo este tema. O recurso foi distribuído inicialmente para a 4ª Turma mas, posteriormente, foi afetado à 2ª Seção do STJ, sob o rito dos repetitivos.

 

Contudo, no dia da sessão de julgamento, o STJ resolveu, por maioria, retirar o caráter repetitivo do recurso, com a finalidade de propiciar melhor exame do tema pelas duas turmas que compõem a 2ª Seção. Foi mantida, entretanto, a afetação para julgamento do RESP à 2ª Seção do STJ, órgão colegiado responsável pela uniformização da jurisprudência das Turmas de Direito Privado daquela Corte.

 

O relator do caso foi o ministro Raul Araújo e, ao final do julgamento, a 2ª Seção do STJ reconheceu a impossibilidade de o direito de crédito de ex-funcionário da Cofavi atingir o patrimônio do fundo Cosipa, remetendo para a fase de execução a discussão probatória sobre a titularidade dos recursos existentes no Plano PBD.

 

Posteriormente, em 2017, a 3ª Turma do STJ julgou o Resp nº. 1.673.367/ES, relatado pelo ministro Villas Bôas Cueva, e, por unanimidade, reconheceu expressamente a ausência de solidariedade entre as submassas e decidiu que a Previdência Usiminas não está obrigada a manter os pagamentos de complementação de aposentadoria dos ex-empregados da Cofavi, tendo em vista a ausência de formação da reserva matemática necessária para fazer frente a tal compromisso, rejeitando, portanto, o pagamento da aposentadoria vitalícia pleiteado no caso.

 

Apesar dos precedentes do STJ, nos últimos meses o TJES já determinou, em apenas 8 processos, a liberação de cerca de R$ 118 milhões do fundo Cosipa para ex-trabalhadores da Cofavi.

 

Se configura aqui um descalabro jurídico, representado pela insistência do TJES em descumprir a legislação de regência da matéria, a posição do órgão federal de fiscalização do setor e a clara jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

 

Para além da dimensão jurídica, as decisões proferidas pelo TJES constituem também um verdadeiro descalabro social ao provocarem enorme impacto no tecido microeconômico das famílias que têm no fundo Cosipa a complementação de suas merecidas aposentadorias. Ao afetar negativamente o patrimônio do fundo Cosipa, as liberações de recursos determinadas pela Justiça capixaba colocam em risco o próprio sustento de mais de 7 mil famílias.

 

Este cenário de incertezas traz ainda uma grave preocupação sistêmica para todo o mercado. A independência patrimonial entre os diversos fundos administrados pelas EFPC é um dos pilares jurídicos do sistema de previdência complementar do país. Em última análise, é ele que confere segurança para os participantes no sentido de que, se por um infortúnio um determinado fundo de previdência ou submassa tiver déficit, os demais fundos ou submassas administrados pela mesma EFPC não serão indevidamente comprometidos e a EFPC não será colocada em risco espiral de instabilidade financeira.

 

Se a Justiça capixaba continuar insistindo em negligenciar o fato de que as EFPC como a Previdência Usiminas administram diversos fundos de previdência, para diversos grupos de participantes e patrocinadores, com segregação e independência patrimonial, as repercussões jurídicas, sociais e sistêmicas serão graves e imprevisíveis.

 

Ao STJ, cuja missão constitucional é a de uniformizar a interpretação da legislação federal e assegurar a unidade e a coerência do Direito, impõe-se a pacificação deste tema tão importante para o mercado de previdência complementar do país e seus participantes, os trabalhadores que por anos a fio confiaram seu futuro aos planos de aposentadoria administrados por entidades fechadas de previdência complementar. (JOTA)